
Decidi me dar um presente inusitado: um dia sem fones de ouvido. Só eu, os sons da cidade e aquela pressa costumeira que acompanha as manhãs de ônibus lotado. Não se engane, o metrô não foi mais gentil comigo. Entre empurrões, olhares cansados e passos apressados, fiz um esforço quase heroico: olhei nos olhos de cada pessoa que cruzou meu caminho.
E que viagem intensa foi essa…. Cada rosto carregava um universo. Tentei decifrar suas histórias, imaginar seus dramas, seus amores, suas perdas. Uma senhora com sacolas pesadas talvez voltasse para uma casa vazia; o jovem com os fones (ironia do destino) parecia fugir de algum silêncio. Minha imaginação foi longe, porque cada vida que cruza a nossa é, no fundo, uma narrativa em andamento.
À noite, já de volta ao meu refúgio, deitei-me na rede da varanda. O vento suave, o miado preguiçoso do gato, o latido impaciente dos cães… tudo conspirava para que aquelas histórias inventadas se criassem no papel. Ali, no balanço leve da rede, cada olhar do dia encontrava um sentido.
Percebi, então, que escrever é também isso: abrir os olhos para o mundo. Ver pessoas como capítulos ambulantes, captar o canto dos pássaros no meio da selva de pedra, encontrar Deus nos detalhes mínimos e até beleza nas coisas estranhas e, às vezes, sombrias.
Meu momento perfeito de escrita não vem do silêncio absoluto, mas desse estado de coração aberto. Quando a pressa cede espaço à observação. Quando cada rosto, mesmo anônimo, deixa de ser só um rosto e passa a ser história.







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